— Tolisses

Coisas do Ulisses Mattos

Amo muito tudo isso?

O sujeito estava sentado em frente à TV, vendo um programa qualquer. Veio o intervalo. Os anúncios. O comercial. É, veio o intervalo para os anúncios comerciais. Sempre vem. São os anunciantes que pagam a programação que a TV lhe dá de graça. “Mas e a TV por assinatura? O telespectador está pagando para ver anúncios também? Ou teria que pagar mais na assinatura se não houvesse propaganda ali também?”. O rapaz já estava começando a deixar aquele pequeno estalo que teve virar indignação. Até que surgiu um anúncio que lhe prendeu a atenção. Era um daqueles com uma sucessão de cenas agradáveis, que se enfileiram até que o produto seja finalmente revelado.

Uma criança correndo com um cachorrinho. Eles caem e rolam contentes na grama. O telespectador nunca tinha feito aquilo, mas teve a impressão de que se esfregar no mato, mesmo podendo encontrar carrapatos, era algo bom. Em câmera lenta, pelo menos, parecia ser.

Uma família sentada à mesa, esperando a mãe chegar com o prato principal, algo delicioso como só um cadáver animal bem temperado consegue ser. O vovô fala alguma coisa e todos riem, enquanto a vovó lhe faz uma cara de “ah, seu maroto, você não tem jeito!”. O telespectador não sabe o que o velhinho palhação disse, pois esse tipo de comercial só tem música, nada de diálogos.

Amigas muito charmosas parando o carro conversível em um sinal de trânsito. O diretor do anúncio não deixa um garoto vir fazer malabarismo com bolas de tênis para ganhar um trocado. Surge ao lado um carro com um rapaz bonitão. Ele olha para elas e consegue fixar o olhar em apenas umas das três moças com aparência de modelo, como se fosse amor à primeira vista. O sinal abre, as mulheres arrancam e dixam o cara com um sorriso bobo, enquanto duas amigas brincam com a que foi paquerada.

Uma criança reparte o pedaço de bolo de sua merenda com um amiguinho de escola. São de etnias diferentes.

Um cara nos seus quarenta anos corre para dentro da área e marca um golaço em uma pelada. É abraçado pelos amigos e acena para a plateia. Uma grávida lhe manda um beijo, passando a mão pela barriga que traz um feto que lhe chuta as costelas, como se imitasse o pai artilheiro.

A essa altura, o telespectador já está bem tocado pelas cenas. “Que produto é esse?”. Ele quer esses momentos! “Será que é um cartão de crédito?”. Tomara que sim, pois seu atual não quer deixar de cobrar anuidade e seria uma boa trocar. “Ou é um plano de saúde?  Pois é, esse momentos não são nada se não houver saúde para curti-los”. Será que cobrem carência?

Mais cenas.

Um casal passeia de bicicleta, uma executiva é aplaudida depois de mostrar gráficos em uma reunião, um garoto de óculos embaçados se deixa molhar na chuva de verão, um pai coloca o cobertor em cima do filho que adormeceu.

“Que produto é esse? É um banco?”. Já se passaram 25 segundos!

Cena de um rapazinho meio feio dando seu primeiro beijo. A moça é linda. Está na hora do nome do produto…

Sopa instantânea. Dê a você mesmo de presente esta sopa instantânea, balbucia o slogan.

“Quê?!!! Esses momentos estão ligados a uma sopa em pó?”. O telespectador fica frustrado e pega o controle remoto, furioso já. Mas aparece um anúncio com jingle. Ele adora jingles. Acaba se acalmando e espera mais um pouco antes de acionar o controle e ver comerciais em outros canais. Nas próximas compras, vai levar uma sopa instantânea, pela primeira vez. De qualquer marca, pois não lembra mais qual era a do comercial daquele pessoal feliz.

 

Por Ulisses Mattos

Texto original publicado em novembro de 2005, na coluna “1001 Polegadas”, no Jornal do Brasil.

1 comment
  1. Pablo says: 20 de agosto de 20124:22

    Me lembrou uma música: “Deixa de lado o que se diz, tem no mercado é só pedir. Me faz chorar e é feito pra rir…” e quase me fez esquecer que não gosto de sopa.

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