— Tolisses

Coisas do Ulisses Mattos

Kibeleza de sampler

Quando surgiu na música o uso do sampler para inserir trechos de canções dentro de outras, achei estranho. Ainda mais com o exagero da prática em algumas obras. Logo de cara, em 1989, surgiu Vanilla Ice com o sucesso “Ice Ice Baby”, que nada mais era do que um riff do Queen. Compare (ou, como diria a Folha de S. Paulo, entenda):

 

A prática acabou dando briga com uma música do The Verve, “Bitter Sweet Symphony”, de 1996. A banda negociou o uso de um trecho da execução da Andrew Oldham Orchestra para “The Last Time”, dos Rolling Stones. A empresa que detinha os direitos da música alegou que o uso foi excessivo, meteu a bocarra jaggeriana no trombone e teve sucesso em um processo de plágio. No fim das contas, o crédito da música do Verve ficou para Jagger e Richards, mesmo que com letra nova.

 

Mas com o tempo, parece que a coisa foi ficando mais moderada. Não rolaram mais grandes atritos e eu até acabei me acostumando. Parece que os artistas tinham encontrado o tom certo. Até que um dia comecei a reparar na qualidade excepcional do rap “Gangsta´s Paradise”, de um tal de Coolio. Conheci a música quando um parceiro de trabalho, mais de uma década mais jovem que eu, a escolheu como trilha sonora para sua entrada no palco em um show de stand-up comedy que fizemos juntos.

 

Não corri atrás de mais informações sobre a canção na época. O tempo correu e um dia dei de cara com os créditos da música, que incluíam Stevie Wonder. Primeiro pensei “Caramba, o Estevãozinho Maravilha foi parceiro do rapper? Que inusitado!”. Depois reconsiderei. Será que o ídolo dos anos 70 (e, por que não, dos 80, 90, 00 e 10) ia mesmo dar essa moral para um rapper? Iria sentar com o cara e compor um musicão assim? Fui atrás de mais informações e descobri que havia uma música do Wonder chamada “Pastime Paradise”, de 1976. Fui ouvir e lá estavam todos os grandes elementos do rap do Coolio.

 

Era praticamente a mesma música. Só que original. Só que… melhor. Entrei em contato com esse meu jovem amigo e lhe mandei a música do Stevie Wonder, que ele não conhecia. Percebi que ele ficou meio decepcionado em saber que a música não era uma sacada do Coolio, mas uma versãozinha de uma belíssima obra de um mestre.

Não vou levantar nenhuma bandeira contra versões disfarçadas de novas músicas. Há público que goste, há mercado para disso. E artista que precise disso. Só queria que as pessoas ficassem mais atentas, para não admirar os músicos pelos motivos errados.

Quer ver um jeito diferente de se inspirar em uma música e criar outra totalmente diferente? Existe uma canção maneiríssima de David Bowie, “Space Oddity”, de 1969. A letra, comovente, conta a história do astronauta Major Tom. No espaço, ele perde contato com a base na Terra e é dragado pelo cosmo.

 

A música é tão boa que ainda inspira jovens e fantoches em todo o mundo (favor assistir de 0:42 a 1:17) .

 

Nos anos 80, o alemão Peter Schilling compôs “Major Tom (Coming Home), recontando a história de Major Tom.

 

Não fez só uma versão em alemão para “Space Oddity”. Não fez uma nova música recheada de referências à música do Bowie. Ele teve inspiração para pegar o personagem e bolar uma letra nova para uma melodia totalmente diferente, com direito a um refrão forte e grudento. É a cara dos anos 80, completamente datada, mas tá valendo.

Se o nosso Major Tom realmente morreu, espero que ele tenha ido parar no paraíso certo: o do tempo passado, não o do gangsta.

0 comments
Enviar comentário